Tinta Bruta: Solidão Fluorescente na Tela Grande

Depois de uma estreia decepcionante – ao menos para mim – com o morno Beira-Mar, a dupla de cineastas gaúchos Filipe Matzembacher e Márcio Reolon mantém o olhar nas questões contemporâneas do universo LGBTQI+ no ótimo Tinta Bruta.

O longa-metragem foi vencedor do principal prêmio do cinema LGBT no mundo, o Teddy,no Festival de Berlim, além de ganhar quatro prêmios, entre eles o de melhor filme, no Festival do Rio, em 2018.

O filme conta a história de Pedro (Shico Menegat) um rapaz introspectivo e recluso que, após sofrer constantes ataques homofóbicos, está sob julgamento depois de ser expulso da faculdade por agredir um de seus colegas de turma.

Para conseguir fechar o mês com as contas quase em dia, o rapaz faz apresentações virtuais e ganha destaque no mundo virtual com o nickname “Garoto Neon”, uma analogia as tintas fluorescentes que ele espalha no corpo durante as performances de webcam de alto teor erótico que realiza para os seus seguidores.

É neste espaço virtual que o personagem se liberta das amarras e deixa a introspecção de lado. Mas tudo muda quando ele descobre que o bailarino Leo (Bruno Fernandes) está fazendo apresentações semelhantes as suas e ‘roubando’ seus clientes/ admiradores/ seguidores.

Para minimizar as perdas, os dois começam a se apresentar em dupla e a partir daí, o filme entra em turbilhão de eventos comuns a boa parte das pessoas – embora tenha particularidades do universo gay – ao apresentar os desdobramentos que essa figura causa no cotidiano de Pedro e debater sobre a solidão urbana e o esvaziamento das grandes cidades.

Na crescente dos acontecimentos, o longa levanta questões como a homofobia e sua violência gratuita, as formas de prazer fluidas e expandidas pela geração pós-millennials – aquela em que as pessoas já nasceram e são criadas com a internet -, além das possíveis novas configurações de relacionamentos.

O filme tem uma belíssima fotografia e uma ótima trilha sonora que dialoga com o melhor da nova cena musical brasileira nas vozes e canções de nomes como Jaloo, Carne Doce e Letrux que auxiliam na forma de contar essa história que leva o espectador a refletir sobre a sensação de não pertencimento, de estar só mesmo estando constantemente conectado.

MPBQueer e a nova identidade da música brasileira

Em tempos de representatividade, grupos sociais que sempre foram colocados em segundo plano – como os negros e as mulheres – estão cotidianamente amplificando sua voz . Dentro de coletivos, movimentos sociais e espaços de formação, a discussão e o empoderamento ganham cada vez mais força. “Minorias” que até pouco tempo eram ignoradas encontram, com muita luta, cada vez mais espaço.

A arte é um dos canais que serve de trampolim para este “abrir das portas”. O diálogo que a nova geração da música brasileira estabelece com a sexualidade e as questões de gênero e consequentemente, com a liberdade em ser o que quiser, exemplifica e desafia o que está pré-estabelecido.  Embora o rótulo não lhes caiba, o título “MPBQueer” surge como uma possível descrição sobre eles, que fogem ao senso comum sobre masculino e feminino.

Tendo como base a Teoria Queer – vertente que se popularizou a partir da publicação de “Problemas de Gênero”, da filósofa americana Judith Butler- que, resumidamente, pode ser definida como tudo que escapa às formulações habituais ou de senso comum, essa nova geração se destaca justamente pela pluralidade ao apresentar trabalhos musicais com sonoridades diversas, além de usar o corpo como plataforma para construção de novas imagens que valorizam a diversidade e ampliam o discurso relacionado às questões de gênero, em que normalmente se determina a inserção de um indivíduo na sociedade segundo normas específicas de ser “homem” ou “mulher”.

Falando sobre a música produzida no Brasil, a partir de artistas que se propõem a quebrar os padrões já determinados, é impossível não citar o nome de Ney Matogrosso. O cantor apareceu no início da década de 1970 e deixou uma interrogação na cabeça de muita gente, ao surgir com o peito peludo, dançando de forma sensual e usando uma série de elementos do universo feminino, como: maquiagem, penas e plumas, além da voz  aguda. Ney também abriu o debate para assuntos como, por exemplo, a homossexualidade, em entrevistas, músicas e na identidade visual de seu trabalho (a capa do disco “Feitiço”, de 1978).

Os novos

O pernambucano Johnny Hooker é o artista mais associado à figura de Ney Matogrosso. Suas apresentações ao vivo são sempre teatrais e arrojadas, do figurino a performance, dialogando com a estética difundida por Ney. Hooker se apropria do brega, do rock, do samba, do frevo e da passionalidade em suas canções, ao retratar as dores de amor de uma relação entre dois homens no álbum “Eu Vou Fazer uma Macumba pra te Amarrar, Maldito!”. Jaloo, vem do Pará, mistura tecnobrega ao universo pop, em canções deliciosas como “Insight”. O visual super colorido é um híbrido de referências que misturam peças masculinas e femininas, a cultura indígena e artistas como a cantora alemã Yo Landi Vi$$er.

Dialogando diretamente com o universo tropicalista a banda As Bahias e a Cozinha Mineira flerta com o samba, a bossa nova e o clube da esquina para abordar questões femininas em letras fortes. As vocalistas Assucena Assucena e Raquel Virgínia, transexuais, são uma espécie de Gal e Bethânia contemporâneas, donas de vozes imponentes e personalidades ímpares. Com um som sujo e que bebe do rock dos anos 1980 e da new wave a banda Verónica Decide Morrer, é liderada pela transexual Verónica Valenttino. Surgida em Fortaleza, une o  visual glam e o discurso afiado está em músicas como “Bicha Invejosa” e “Testemunho de Trava”.

No Espírito Santo, a cena musical encontra representatividade nas questões de gênero e sexualidade no audiovisual. O cantor Anderson Bardot interpreta um personagem que não pertence a nenhum gênero pré-definido no videoclipe da canção “Meus Vinte Anos”. Já Silva abre o debate para o amor livre e a sexualidade fluida em “Feliz e Ponto”. No clipe, ele tem uma relação com um homem e uma mulher.  

O funk, o rap e o soul ganham voz com o trio black power Rico Dalasam, MC Linn da Quebrada e Liniker. Dalasam, que apareceu em batalhas de MC em São Paulo, reafirma em suas composições a negritude e  a homossexualidade, tanto no visual fashionista quanto nas músicas, como no rap ostentação “Riquíssima”. Linn usa a música – e o teatro – para criar um diálogo com quem, como ela, decidiu existir como bem quer. “Talento” é um exemplo do discurso reto e das rimas sem meias palavras da MC.

Mas, talvez a figura mais emblemática da nova geração seja Liniker. Criado em família de músicos na periferia paulista e com mais de cinco milhões de acessos apenas no vídeo da música “Zero”, ele não se define como “ele” ou “ela”. Negrx , usa saia, batom e turbante, e empresta sua voz grave para o recém-lançado “Remonta”, álbum em parceria com a banda Caramelows, realizado por meio de financiamento coletivo com quase o dobro da meta estabelecida.

As apresentações lotadas desses artistas confirmam o sucesso e o entendimento do público sobre essas novas propostas artísticas. Mesmo diante de um período de intenso conservadorismo pelo qual passa o país, a escolha involuntária desta geração de artistas reunidos pelo mesmo discurso – já que nunca houve um movimento organizado com o objetivo de abordar essas questões – prova que música de qualidade atrelada a possibilidade de escolher ser o que se quer, ainda gera lucros para a arte. E para a vida.

*Texto originalmente publicado no caderno Pensar, do jornal A Gazeta, em 22 de outubro de 2016, com o título “Uma Nova Identidade”.